quinta-feira, 13 de setembro de 2012

"A corrupção já ultrapassou os níveis suportáveis e de decência"


Biblioteca do Mosteiro de São Bento, São Paulo.


















Nesta entrevista, concedida ao Jornalista Armando C. Serra Negra, do "Diário do Comércio,  o Mestre e Doutor Frei Nilo Agostini fala sobre a corrupção em nosso país.

Atuando na área de Teologia, com especialização em Ética/Moral, Frei Nilo lembra que somos seres éticos por excelência. "Precisamos recuperar esta base para o sustento da vida. Qualquer forma de organização entre os seres humanos tem necessidade da ética. Ela mobiliza o ser humano e o torna capaz de discernimento e tem na alteridade o seu lado fecundo de respeito ao outro", diz.

Frei Nilo é coordenador e professor dos Cursos de Teologia (graduação) da Faculdade João Paulo II, de Marília, SP,  que atende a Região Eclesiástica de Botucatu, SP; bem como é coordenador do Curso de Teologia (graduação), da Faculdade de São Bento, de São Paulo (capital). É igualmente professor no Curso de Teologia Pio XI, do Unisal (Centro Universitário Salesiano), em São Paulo (capital) e professor do ITELSÉ, Instituto de Teologia da Região Sé, da Arquidiocese de São Paulo (capital).

Frei Nilo se tornou mestre em Teologia pela Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Ciências Humana de Strasbourg, França (1985) e Doutor em Teologia, pela Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Ciências Humanas de Strasbourg, França (1989).


Em que medida a corrupção é inerente à natureza humana?
O ser humano tem um desejo ilimitado de realização e felicidade, mas nem sempre contenta-se com o que pode realizar. Se moralmente fraco, resvala, não raro, na frustração da infelicidade, e se entrega facilmente ao desejo de consumir, à busca do poder e às prome...
Essas mirabolantes para preencher sua vida. O mal surge e instala-se, atingindo o seu âmago, em um espectro que se alastra na sociedade. Sob múltiplas formas, a corrupção translitera o mal e aninha-o no próprio ethos humano, sugando a natureza, numa depredação voraz e sem limites; e parece dominar, desequilibrando o ser humano em suas relações fundamentais (consigo, com os outros, com a natureza e com Deus).

Qual a lição do Pecado Original?
A origem do mal vem apontada como consequência do pecado cometido nos primórdios da humanidade. Existe uma “estruturação” do pecado que dá origem a novos pecados. Perde-se a noção da responsabilidade, da solidariedade e do cuidado do bem comum. Segundo o Novo Testamento, a vitória sobre o mal não será obtida num movimento solitário do ser humano, de pretensa autossuficiência, prescindindo dos outros e do próprio Deus.

Aproximadamente - ou exatamente - quantas passagens bíblicas (Velho e Novo Testamento) referem-se à corrupção?
Os registros são numerosos. Vejamos alguns que melhor se adequam ao atual contexto político: Toda corrupção e injustiça desaparecerão, mas a fidelidade permanece para sempre (Ecl. 40,12); Não deixarás o teu Santo experimentar a corrupção” (At. 13,35); “Que o direito flua como água e a justiça como riacho perene”, podemos afirmar seguindo o pensamento do Profeta Amós (Am. 5,21-24). Os profetas foram os que mais denunciaram a corrupção, fazendo seguidas menções a questões sociais. Para eles, o ideal é buscar o Direito e a Justiça (mišpat e sedaqâ), e não deixam de apontar para diversos problemas: a administração da justiça nos tribunais, as injustiças praticadas no comércio, a concentração de terras, os salários injustos, os pesados tributos e impostos, a usura, a ganância.

O que a Corrupção significa para Deus?
A relação com Deus, já no Antigo Testamento, exige que se viva segundo o direito e a justiça.
Os autores do Novo Testamento estão também cientes dos perigos das riquezas, quando a nossa atitude diante delas é de cobiça ou de avareza (Lc 12,13-21), o que provoca a corrida pela acumulação de riquezas (Mt 6,21-22). Fala-se, então, do poder negativo das riquezas (Mc 4,19; Mt 13,22; Lc 8,14). Para São Paulo, é a avareza a que mais se opõe à ordenação cristã dos bens temporais, uma idolatria (Cl 3,5; Ef 5,5) do avarento que coloca seu fim último nos bens materiais. São Tiago cita claramente duas categorias de maus ricos: os comerciantes presunçosos, que só pensam em ganhar dinheiro (4,13-17), e os ricos vorazes, que vivem no luxo e devassidão (5,1-6). Estudiosos sérios demonstram com clareza, que tudo isso reflete no fundo um autêntico desinteresse por Deus.

E para a Criação?
A Bíblia é clara em afirmar que “Deus viu que era bom tudo quanto havia criado” (Gn 1,31). São Basílio (329-279) denuncia os maus políticos: “Tornaste-te um explorador ao apropriar-te dos bens que recebeste para administrá-los”, advertindo-os que “Se alguém se condena, não será por ter possuído riquezas, mas por havê-las viciado com desejos pecaminosos e tê-las empregado mal”. São Tomás de Aquino (1225-1274) é proverbial: “O que faz injusto um governo é confundir o bem particular do governante, com o bem público. Quanto mais se afasta do bem comum, tanto mais injusto é o regime; ora, mais se afasta do bem comum a oligarquia, na qual se busca o bem de uns poucos, do que na democracia, na qual se procura o de muitos; e ainda mais se aparta do bem comum na tirania, em que se busca somente o bem de um”.

A corrupção é um pecado mortal?
Trata-se de uma ação humana, passível de imputabilidade, acusação e de censura; a corrupção pode ser um pecado mortal se reunir as seguintes condições: se a matéria for grave (aqui entram considerações como montantes desviados e o quanto isso lesou os cidadãos e sua dignidade, atentando contra o bem comum), se foi cometido com plena consciência, em plena liberdade e deliberação.

Relacione e comente, sob o prisma político, as principais passagens bíblicas em que o tema aparece, e suas consequências espirituais.
A minha análise segue a linha de identificar hoje três grandes idolatrias: do dinheiro, do poder e do prazer. Lembro que é na idolatria que o pecado se mostra em toda a sua realidade perniciosa. Ela está fortemente disseminada, pelas estruturas injustas, pela corrupção tão fortemente vulgarizada, pela morte violenta, massacres, genocídios, desaparecimento de povos indígenas, conflitos armados, morte de culturas, morte religiosa pela proliferação de seitas alienantes, e toda forma de desumanização. Os ídolos do dinheiro, do poder e do prazer são poderosos e insaciáveis. A idolatria do dinheiro leva ao egoísmo e à ganância, seduzindo pela ilusão do ter, em detrimento do ser, e consequente absolutização do poder político, social e econômico, originando toda sorte de violência estrutural e mantendo no subdesenvolvimento os nossos povos. A Conferência latino-americana de Bispos, reunida em Puebla, México, em 1879, já dizia que “é preciso anunciar uma proposta concreta de restabelecimento da justiça, da igualdade dos cidadãos, da dignidade humana’. O ídolo do prazer é apresentado como a mãe de todos os ídolos, sendo o objetivo último a posse dos outros dois: poder + dinheiro = prazer. Está no cume da tríade consumista dos desejos pós-modernos. Esta idolatria provoca a perversão da própria cultura como hedonismo, o consumismo e a corrupção.

Em face da corrupção, como vê a situação política brasileira?
A corrupção em nosso país é avassaladora, nefasta, que compromete as políticas sociais, invade os órgãos públicos, infiltra-se nos poderes da República. Constitui-se numa grave crise ética, e já ultrapassou os níveis suportáveis, e de decência. Pior é que se alastrou de tal forma, que a sociedade tem aceitado como normal o que não se justifica eticamente (por exemplo, o Caixa 2). Em nosso país, nos deparamos a toda hora com relações de conivência, de simbiose, de cobertura de interesses vários para benesses particulares, em detrimento do público, numa política de bastidores, com seus conchavos, que compromete o jogo democrático, onera a sociedade e fere a liberdade. Neste cenário, o compromisso e a honestidade são vividos num contexto de sedução permanente, capaz de afastar toda possibilidade de diálogo e exilar a própria ética.

Se as coisas continuarem seguindo como estão, nessa espiral de corrupção social e política, o que poderá acontecer com a sociedade brasileira em termos materiais e espirituais?
Sem a superação da crise ética, as atuais mudanças sociais e culturais não poderão conduzir a uma sociedade justa e digna. Ao contrário, poderá haver uma ulterior degradação das relações sociais e um aumento da injustiça, da violência e da insensatez. Há uma crise de legitimação das próprias instituições. Até a lei, em sua efetivação está debilitada pelo abismo existente entre o que nelas está previsto e a realidade social sugada pela corrupção e falta de ética. A lei não é garantia dos direitos do cidadão, pela parcialidade com que trata nossa população, discricionária no trato dos próprios crimes, favorecendo uns e sendo feroz com outros. Isto é apenas a ponta do iceberg de um projeto político-social marcado pela parcialidade, pela exclusão, pela onerosa falta de ética. O assalto à “coisa” pública (res-publica) tornou-se o prato cotidiano justamente por parte daqueles que deveriam velar por ela, custodiá-lo em nome do povo.

Dê a sua opinião sobre a corrupção no Brasil e no mundo nos dias de hoje, indicando onde fundamentar-se para continuar encarando os fatos quotidianos, fortalecendo-se na Esperança de mudança.
Já pude escrever em meu livro “Ética: Diálogo e Compromisso” que é hora de voltarmos à ética como o alicerce do ser humano desde sua raiz mais profunda. Somos seres éticos por excelência. Precisamos recuperar esta base para o sustento da vida. Qualquer forma de organização entre os seres humanos tem necessidade da ética. Ela mobiliza o ser humano e o torna capaz de discernimento e tem na alteridade o seu lado fecundo de respeito ao outro. Que fiquem longe as palavras aliciadoras, os discursos manipuladores. Isso requer respeito das pessoas, coerência nas relações, transparência em qualquer empreendimento. Deixar de ser ético é cavar um buraco debaixo dos próprios pés; a rigor, viver sem ética é ser ineficaz.

Qual sua expectativa pessoal acerca do julgamento do Mensalão?
Minha expectativa é que o julgamento do mensalão se paute realmente na justiça, fora do jogo de conivências, pressões, conchavos de bastidores que oneram a Democracia e desprestigiam a República. Que seja uma lição de cidadania, civilidade e moralidade ao nosso povo. Que isso ocorra em todos os julgamentos realizados neste País, sem distinções de cidadãos; somos iguais em dignidade e iguais perante a lei. Exorto os Ministros à lisura, à imparcialidade, à isenção ante as influências externas. Espero que não tenhamos que repetir as palavras atribuídas ao Cardeal Renard, de Lyon, França, quando disse: “O que é legal não é necessariamente moral”. Senhores ministros, estejam à altura de sua missão!

Entrevista para o Jornal “Diário do Comércio” de São Paulo, edição dos dias 1, 2 e 3 de setembro de 2012