quinta-feira, 4 de outubro de 2012

SÃO FRANCISCO DE ASSIS: A FORMA EVANGÉLICA DE VIDA


 
 
 
Frei Nilo Agostini, ofm

 

            A forma evangélica de vida constitui-se no coração da evangelização. Profundamente enraizados em Jesus Cristo e seu Evangelho, nós Frades Menores sentimos residir aí a nossa razão de ser. E este modo próprio de vida encontra na vida de fraternidade seu lastro de segurança e garantia de fecundidade. Desde ela, somos enviados como frades menores itinerantes a evangelizar com a vida e a palavra.


1. “É isso que eu quero, isso que eu procuro, é isso que eu desejo de todo o coração” (1Cel 22)

            Textos evangélicos ligados ao seguimento de Jesus Cristo[1]e à missão[2] estão presentes na definição do projeto de vida de Francisco. É bom notar que “trata-se de textos que remetem ao modelo de vida dos carismáticos itinerantes da Igreja primitiva, inaugurado por Jesus e os apóstolos”[3].

            Biógrafos, como Tomás de Celano e São Boaventura, relatam, de maneira quase idêntica, como Francisco intuiu o seu projeto de vida ao ouvir a leitura da passagem do Evangelho, onde se fala do envio dos apóstolos para a missão. “Francisco, ouvindo que os discípulos não deviam possuir ouro, prata ou dinheiro, nem levar bolsa ou sacola, nem pão, nem bastão pelo caminho, nem ter calçados ou duas túnicas, mas pregar o reino de Deus e a penitência, entusiasmou-se imediatamente no espírito de Deus: ‘É isso que eu quero, isso que procuro, é isso que eu desejo fazer de todo o coração’”[4].

            O Anônimo Perusino, por sua vez, relaciona a intuição de Francisco a outro episódio[5]. Acompanhado de Bernardo de Quintavalle e de um certo Pedro, Francisco dirigiu-se à igreja de São Nicolau, onde, após ter rezado, abre o Evangelho e depara-se com as três passagens: “Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres, e terás um tesouro no céu” (Mt 19,21). “Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,14). “Não leveis coisa alguma para o caminho, nem bastão, nem mochila, nem pão, nem dinheiro, nem tenhais duas túnicas” (Lc 9,3). Ouvindo estas palavras, Francisco e seus companheiros exclamaram: “Eis o que mais queríamos, eis o que procurávamos”, acrescentando, então, Francisco: “Esta será a nossa regra... Ide pôr em prática o conselho que ouvistes do Senhor”.

            Ao se digirem a Roma para pedir a aprovação de seu modo de vida, por volta de 1209/10, Francisco e seus companheiros não queriam outra coisa senão a permissão para viver um modo de vida pobre, a exemplo de Jesus e dos apóstolos, e pregar. Não aprovar tal modo de vida seria desaprovar o próprio Evangelho. Receberam, sim, da parte do Papa Inocêncio III, a apovação do modo de vida e a licença de pregar a penitência[6]. Inicia-se, a partir de então, um primeiro período (1209-1221), denominado de “heróico”, na vida dos primeiros frades. Sua vida e fervorosa pregação atraíam multidões, com grande número de ingressos na Ordem. Nem mesmo faltou a tentativa do martírio entre os sarracenos. O carisma pessoal de Francisco e de seus companheiros caracterizaram preponderantemente este período.

            Entre os anos 1223 e 1945, identifica-se um outro período na Ordem, iniciado já em vida de Francisco. Trata-se da “virada intelectual da Ordem”[7], que coincide com a necessidade de uma maior organização da mesma e de uma melhor preparação dos frades pregadores. O Concílio de Latrão, de 1215, já havia insistido na necessidade de uma boa formação dos pregadores, isto para poderem combater abusos e heresias. O próprio Francisco chega a se preocupar com a idoneidade dos pregadores, solicitando para isso a devida verificação e aprovação por parte do ministro geral[8]. E para os que porventura não fossem idôneos a este ofício, Francisco lembrava que “todos os irmãos podem pregar pelas obras”[9].

 
2. Uma fraternidade apostólico-itinerante

            Para Francisco, a centralidade do seguimento de Jesus Cristo era o eixo norteador. Sabemos como este seguimento constitui-se num fenômeno alimentador da espiritualidade cristã, bem presente nos movimentos religiosos pauperísticos dos séculos XI e XII[10]. As próprias Cruzadas, com a reconquista dos lugares santos, e abrindo-os à peregrinação, permitiram que se acentuasse a busca das fontes evangélicas, com ênfase na espiritualidade do Jesus histórico[11]. Muitos foram os movimentos que se propunham a imitar o exemplo da ‘pessoa’ Jesus Cristo, sobretudo na pobreza e missão. São Francisco pertence a este contexto de busca.

            Fixando-se na pessoa de Cristo e os Apóstolos, lança Francisco as primeiras bases do ideal de fraternidade[12]. Para estudiosos, como Gerd Theissen[13], este modelo de fraternidade realizado por Cristo e pelos apóstolos caracteriza-se como um movimento, calcado sobre o papel dos carismáticos itinerantes, dos simpatizantes das comunidades locais e o papel do Revelador, o Filho do Homem.

            Francisco, ao precisar que a regra e a vida dos Frades Menores é “observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo”[14] ou “viver segundo a forma do santo Evangelho”[15], inspira-se “no modelo realizado por Jesus Cristo e os apóstolos”[16]. Partindo deste enraizamento fundacional, estudiosos do movimento franciscano definem a fraternidade franciscana como uma “fraternidade apostólico-itinerante[17].


3. “O mundo inteiro é o seu espaçoso cláustro” (J. de Vitry)

            Mesmo com algumas dúvidas iniciais, se deveria viver entre o povo ou na solidão, fica logo claro para Francisco que deveria “salvar almas”, “viver para os outros”, “pregar a palavra de Deus ao povo”, “ser arauto do Evangelho”[18]. “Como os apóstolos, Francisco sente-se chamado a seguir a Jesus Cristo, não só para estar em sua companhia, mas também para ser enviado a pregar (cf. Mc 3,14-15). Para Francisco e os movimentos pauperísticos em geral, o seguimento de Jesus Cristo é inseparável da missão. Por isso, ao escrever a sua Regra, desenvolve como motivo inspirador: o conteúdo da missão dos apóstolos (Mc 10,7-13), que ouviu na igreja da Porciúncula, e as três passagens evangélicas (Mt 19,21; Lc 9,3; Mt 16,24), lidas com Bernardo de Quintavalle na igreja de S. Nicolau. Foram estes os textos que inspiraram a ‘forma de vida evangélica’, característica da Ordem dos Frades menores”[19].


            O envio à missão faz parte do nascimento da Ordem dos Frades Menores. O Papa Inocêncio III, ao receber Francisco e seus companheiros que lhe submetem sua regra, dá-lhes a bênção e o seguinte envio: “Ide com o Senhor, irmãos, e conforme o Senhor se dignar inspirar-vos, pregai a todos a penitência”[20]. O Papa João Paulo II, em sua carta por ocasião do Capítulo Geral de San Diego, nos lembra este envio, acrescentando: “De minha parte, retomo hoje este envio à missão, e dirijo-o a vós. Assim como, de fato, a existência da vossa Ordem é devida a este primeiro envio, de igual modo hoje a missão que ela recebe da Igreja, na pessoa do Sucessor de Pedro, dá-lhe a sua razão de ser”[21].

            O seguimento de Jesus Cristo e o envio à missão faz dos frades menores evangelizadores itinerantes, para os quais “o mundo inteiro é o seu espaçoso claustro”, na expressão de Jacques de Vitry[22]. Entendemos, então, que Francisco, na Regra Bulada, chegue a falar da Ordem como uma fraternidade de peregrinos e viandantes[23], sendo os frades pacíficos e humildes[24], andando pelo mundo sem nada de próprio[25], trabalhando com fidelidade e devoção[26].


4. “Sempre viveste o que falaste” (2Cel 130)

            Ciente do chamado à missão, Francisco tem clareza que não há frade que não possa fazê-lo, pois “todos os irmãos podem pregar pelas obras”[27]. E apontava sempre para Jesus Cristo, “caminho, verdade e vida”[28], solicitando que “todos os irmãos se esforçassem por imitar a humildade e pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo”[29]. A qualidade evangélica de vida é o substrato primeiro e decisivo, garantia da consistência do próprio anúncio. A missão que nos é confiada realiza-se pelo testemunho de vida e pelo testemunho da palavra.

            Para Francisco, o coração de nossa vocação está em “viver o santo Evangelho”[30]. Nisto ele colocava todo o seu empenho[31], desejoso que seus frades fossem “discípulos do Evangelho”[32]. As palavras do Evangelho transformam-se para Francisco em “palavras do Espírito Santo, que são espírito e vida”[33]. Seu primeiro biógrafo fala dele com as seguintes palavras: “Pregando freqüentemente a palavra de Deus a milhares de pessoas, tinha tanta segurança como se estivesse conversando com um companheiro. Olhava a maior das multidões como se fosse uma pessoa só e falava a cada pessoa com todo o fervor como se fosse uma multidão”[34].

 
            Todo esse vigor de Francisco calcava-se na unidade de seu ser, o que fez Tomás de Celano escrever: “Sempre viveste o que falaste, sempre foste o mesmo por fora e por dentro, sempre foste o mesmo como súdito e como superior!”[35] Em Francisco transbordava em abundância o que o habitava. Centrado na pessoa de Cristo, numa “total entrega ao Senhor”[36], “acima de tudo, desejava aniquilar-se para estar com Cristo”[37]. Escolheu a condição dos pequenos, na minoridade e submissão a todos[38]. Quis que os irmãos se chamassem de “frades menores”[39], apontando para uma condição real de vida, decisiva para reconhecer se um irmão era realmente movido pelo Espírito do Senhor[40].

            A minoridade alia-se à pobreza e à simplicidade como alicerces do frade menor. A pobreza ocupa um lugar de destaque, sem abstrações, e, por isso, expressão de uma vida bem concreta. Lemos na regra: “Os irmãos não tenham propriedade sobre coisa alguma nem sobre casa nem lugar nem outra coisa qualquer; mas, como peregrinos e viandantes (cf. 1Pd 2,11) neste mundo, sirvam ao Senhor em pobreza e humildade”[41].

            Esta forma evangélica de vida ganha concreção e razão de ser na vida em fraternidade. Sem copiar modelos já existentes, Francisco acolhe os irmãos como dádiva de Deus, reunindo-os em fraternidade. “E depois que o Senhor me deu irmãos ninguém me mostrou o que eu deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do Santo Evangelho”[42]. A fraternidade passa a ser o lugar de cultivo do carisma de Francisco; cultivo do ser autêntico, simples e pobre, sem duplicidades e, por isso, sempre disponível; lugar da acolhida do Evangelho de Cristo e das palavras do Espírito Santo (e o seu santo modo de operar), que são espírito e vida[43].



[1] Cf. Mt 16,24; 19,21.
[2] Cf. Lc 9,3.
[3] Ludovico GARMUS, O seguimento de Jesus Cristo em S. Francisco, texto policopiado, p. 13; Cf. Théophile DESBONNETS, Da intuição à instituição, Petrópolis, Ed. Vozes/CEFEPAL, 1987, p. 18-30.
[4]1Cel 22; cf. LegM 3,1 e Juliano de Spira, Vita Sancti Francisci, 15-16.
[5] Cf. AnPer 11.
[6] Cf. Leg3C 43-53; 1Cel 32, 33, 89.
[7] Cf. Lorenzo DI FONZO, “L’apostolato intellettuale”, Miscellanea Francescana, 94 (1994), 525-609.
[8] Cf. RegNB 17,1-2; RegB 9,2.
[9] Cf. RegNB 17,3.
[10] Cf. Herbert GRUNDMANN, Movimenti religiosi nel medioevo, Bologna, Società Ed. Il Mulino, 1980;  Ildefonso SILVEIRA, Itinerário de São Francisco de Assis, col .“Cadernos do IFAN” n. 12, Bragança Paulista, EDUSF, 1995, p. 7-47.
[11] Cf. Lothar HARDICK, Santo Antônio, vida e doutrina, Peetrópolis, Ed. Vozes/CEFEPAL, 1981, p. 36; Augustin FILCHE, Victor MARTIN (ed.), Historia de la Iglesia, vol IX: Las Cruzadas, Valencia, EDICEP, 1977, p. 621.
[12] Cf. Martinho CONTI, Leitura bíblica da regra franciscana, Petrópolis, Ed. Vozes, CEFEPAL, 1983, p. 88.
[13] Gerd THEISSEN, Sociologia do movimento de Jesus, Petrópolis/São Leopoldo, Ed. Vozes/Ed. Sinodal, 1989.
[14] Cf. RegB 1,1.
[15] Cf. Test 14; Leg3C 29.
[16] Cf. Martinho CONTI, op. cit., p. 84-100.
[17] Cf. ibidem, e, sobre o movimento franciscano, David FLOOD, Frei Francisco e o Movimento Franciscano, Petrópolis, Ed. Vozes/CEFEPAL, 1986.
[18] Cf. Legm 2,5.
[19] Ludovico GARMUS, op. cit., p. 11.
[20] 1Cel 33.
[21] Capítulo Geral de San Diego, A Ordem e a Evangelização Hoje, n. 5.
[22] Jacques DE VITRY, Historia Occidentalis, n. 17.
[23] Cf. RegB 6,2.
[24] Cf. ibidem, 3,11.
[25] Cf. ibidem, 6,1.
[26] Cf. ibidem, 5,1.
[27] Cf. RegNB 17,3.
[28] Cf. Adm 1,1.
[29] Cf. RegNB 9,1.
[30] Cf. RegB 1,1.
[31] Cf. 1Cel 84.
[32] Cf. LegM 11,1.
[33] Cf. Lázaro IRIARTE, Vocazione francescana - Sistesi degli ideali de san Francesco e di santa Chiara, Casale Monferrato, Ed. Piemme, 1987, p. 90.
[34] 1Cel 72.
[35] 2Cel 130; cf. 1Cel 115.
[36] Cf. LegM, Milagres, X,8.
[37] 1Cel 71.
[38] Cf. RegNB 5,15; 7,3.
[39] Cf. ibidem, 6,3.
[40] Cf. Adm 12,1-3.
[41] RegB 6.
[42] Test 4.
[43] Cf. 2CFi 3; Adm 7,4; Test 13.