sábado, 23 de abril de 2016

A CENTRALIDADE DO AMOR

Autor: Frei Nilo Agostini, ofm

A fé cristã tem como elemento central o amor. É sua expressão fecunda. Lançando raízes nesta fonte, o cristão alimenta sua vida e norteia seu agir, sentindo-se chamado a fazer-se dom. A própria sexualidade humana encontra aí o terreno propício para o seu devido amadurecimento e integração. “A sexualidade deve ser orientada, elevada e integrada pelo amor que é o único a torná-la verdadeiramente humana”[1].

                Ao tratarmos do amor, estamos diante de um tema extremamente rico, crucial e decisivo para as nossas vidas. Não há como dispensá-lo; seria comprometer nosso desenvolvimento e realização enquanto pessoas humanas. Em nossos dias, como no passado, continuam numerosas as publicações a ele dedicadas.

                O chamado para o amor está no coração da mensagem de Jesus.

O amor-ágape

                O ponto de partida do amor-ágape reside em Deus que é amor. Na Santíssima Trindade, temos a fonte deste amor. Vemo-lo em toda a sua expressão no amor do Filho pelo Pai e no amor do Pai pelo seu Filho. Nós somos incorporados neste amor, no vigor do Espírito Santo, chamados a vivê-lo com o próximo. São numerosas as passagens bíblicas que ilustram com clareza a grandeza deste mistério. Vejamos algumas:

·     “Deus é amor” (1Jo 4,8).
·   “Se alguém me ama, (...) o meu Pai o amará e a ele viremos e nele estabeleceremos morada” (Jo 14,23).
·     “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisso conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,34-35).
·      “O fruto do Espírito é amor...” (Gl 5,22).
·     “Quem beber da água que eu lhe darei, nunca mais terá sede. Pois a água que eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna” (Jo 4,14).

Estamos diante do amor fundamental. Nele, vemos que a fonte divina se inclina até nós; é um amor substancial, fonte de uma vida nova. É ágape, graça e caridade, o amor que transforma a nossa vida humana em vida divina, tornando-nos co-herdeiros em Cristo da herança divina (cf. Rm 8,17). Entendemos, então, que Karl Rahner afirme que o ser humano “é o ser que se perde para dentro de Deus..., ponto donde e ponto para onde, como provir e porvir do homem”[2].
Em Jesus, este amor tomou totalmente posse de seu coração, inflamado que está, eterna e divinamente. Liga-o profundamente ao Pai. “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo: ouvi-o” (Mt 17,5; cf. Mc 9,7). Aí está a manifestação do mistério do ágape, mistério de amor divino e substancial. Implica no cumprimento da lei e no seu aperfeiçoamento, até criar um novo vínculo que não é mais o da lei, mas do ágape. Nele, o ápice é o amor, incluindo os próprios inimigos. Acrescenta-se aqui que este amor implica igualmente um serviço, como resposta ao amor divino em Jesus.
                O ágape nos introduz no mistério do Espírito Santo em nós, o mistério do amor divino que faz de nós filhos de Deus, filhos bem-amados do Pai. Esse amor, inscrito no mais íntimo de nossos corações, leva-nos a unir-nos profunda e divinamente a Jesus e, por ele, ao Pai. Incorporados a Jesus, o Cristo Vivente (cf. Ap 1,18), somos transformados nele, sendo que é “Ele que vive em nós” (cf. Gl 2,20). Faz-se, assim, comunhão, alimento por excelência que se comunica substancialmente.
               No mistério da cruz, compreendemos a qualidade deste amor que se faz oferenda, sacrifício, na doação da própria vida. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). O verdadeiro dom se realiza num completo ultrapassar-se e num esquecimento de si, o que se concretiza num sacrifício. “Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12,24).

              Ágape é, assim, um amor substancial, primeiro, fundamental. Ele reclama nosso retorno para Deus. Exige que amemos nossos irmãos. Cabe-nos fazer a escolha! E, então, faremos a experiência do que há de maravilhoso e único no ágape, que é o mesmo amor substancial e fundante que nos une a Jesus, ao Pai, ao Espírito Santo, na comunhão trinitária, e aos nossos irmãos e irmãs.




[1] CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, “Orientações educativas sobre o amor humano”. L’Osservatore Romano, edição em língua portuguesa, 11/12/1983, ou SEDOC 16 (1984), p. 771-792, n° 6.
[2] K. RAHNER, Teologia e antropologia, São Paulo: Paulinas, 1969, p. 163-165.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

EXORTAÇÃO "AMORIS LAETITIA": A ALEGRIA DO AMOR NA FAMÍLIA

Foi publicada na manhã desta sexta-feira, dia 8 de abril a Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Francisco sobre a família. “Amoris laetitia”, a “Alegria do Amor” é um texto de nove capítulos no qual o Santo Padre recolhe os resultados de dois Sínodos dos Bispos sobre a família ocorridos em 2014 e 2015 citando anteriores documentos papais, contributos de conferências episcopais e de várias personalidades.
É uma Exortação Apostólica ampla com mais de 300 parágrafos e que nos primeiros 7 evidencia a plena consciência da complexidade do tema. Em particular, o Papa escreve que para algumas questões ”em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais. De facto, “as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (...), se quiser ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado”.
Capítulo primeiro: “À luz da Palavra”
No primeiro capítulo o Papa articula a sua reflexão a partir das Sagradas Escrituras, em particular, com uma meditação acerca do Salmo 128, característico da liturgia nupcial hebraica, assim como da cristã. A Bíblia ”aparece cheia de famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares”(AL 8).
Capítulo segundo: “A realidade e os desafios das famílias”
Partindo do terreno bíblico, o Papa considera no segundo capítulo a situação atual das famílias, mantendo ”os pés assentes na terra” (AL 6) como se pode ler na Exortação. A humildade do realismo ajuda a não apresentar ”um ideal teológico do matrimónio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são”(AL 36). O matrimónio é “um caminho dinâmico de crescimento e realização”. “Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las”(AL37) refere o Papa Francisco no seu texto, pois, Jesus propunha um ideal exigente, mas ”não perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera” (AL 38).
Capítulo terceiro: “O olhar fixo em Jesus: a vocação da família”
O terceiro capítulo da Exortação é dedicado a alguns elementos essenciais do ensinamento da Igreja acerca do matrimónio e da família. Em 30 parágrafos ilustra a vocação à família de acordo com o Evangelho, assim como ela foi recebida pela Igreja ao longo do tempo, sobretudo quanto ao tema da indissolubilidade, da sacramentalidade do matrimónio, da transmissão da vida e da educação dos filhos. Fazem-se inúmeras citações da Gaudium et spes do Vaticano II, da Humanae vitae de Paulo VI, da Familiaris consortio de João Paulo II. 
O Papa Francisco neste capítulo terceiro lembra um princípio geral importante: “Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações” (Familiaris consortio, 84). O grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, e podem existir fatores que limitem uma capacidade de decisão. Por isso, ao mesmo tempo que se exprime com clareza a doutrina, há que evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diferentes situações e é preciso estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição” (AL 79).
Capítulo quarto: “O amor no matrimónio”
O amor no matrimónio é o título do quarto capítulo desta Exortação e ilustra-o a partir do “hino ao amor” de S. Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (1 Cor 13, 4-7). Este capítulo desenvolve o carácter quotidiano do amor que se opõe a todos os idealismos: ”não se deve atirar para cima de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e a sua Igreja, porque o matrimónio como sinal implica um processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus” (AL 122).
Também neste capítulo uma reflexão sobre o amor ao longo da vida e da sua transformação. Pode-se ler no documento: “Não é possível prometer que teremos os mesmos sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um projeto comum estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos separe, e viver sempre uma rica intimidade” (AL 163).
Capítulo quinto: “O amor que se torna fecundo”
O capítulo quinto desta Exortação Apostólica foca-se sobre a fecundidade, do acolher de uma nova vida, da espera própria da gravidez, do amor de mãe e de pai. Mas também da fecundidade alargada, da adoção, do acolhimento do contributo das famílias para a promoção de uma “cultura do encontro”, da vida na família em sentido amplo, com a presença de tios, primos, parentes dos parentes, amigos. A “Amoris laetitia” não toma em consideração a família ”mononuclear”, mas está bem consciente da família como rede de relações alargadas. A própria mística do sacramento do matrimónio tem um profundo carácter social (cf. AL 186). E no âmbito desta dimensão social, o Papa sublinha em particular tanto o papel específico da relação entre jovens e idosos, como a relação entre irmãos como aprendizagem de crescimento na relação com os outros.
Capítulo sexto: “Algumas perspetivas pastorais”
No capítulo sexto da exortação o Papa aborda algumas vias pastorais que orientam para a edificação de famílias sólidas e fecundas de acordo com o plano de Deus. Em particular, o Papa observa que ”os ministros ordenados carecem, habitualmente, de formação adequada para tratar dos complexos problemas atuais das famílias” (AL 202). Se, por um lado, é necessário melhorar a formação psico-afetiva dos seminaristas e envolver mais a família na formação para o ministério (cf. AL 203), por outro ”pode ser útil também a experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados” (AL 202).
Também neste sexto capítulo uma importante referência à preparação para o matrimónio e do acompanhamento dos esposos nos primeiros anos da vida matrimonial (incluindo o tema da paternidade responsável), mas também em algumas situações complexas e, em particular, nas crises, sabendo que ”cada crise esconde uma boa notícia, que é preciso saber escutar, afinando os ouvidos do coração” (AL 232).
Espaço neste capítulo para o acompanhamento das pessoas abandonadas, separadas ou divorciadas. É colocado em relevo o sofrimento dos filhos nas situações de conflito. Ao mesmo tempo é reiterada a plena comunhão na Eucaristia dos divorciados e em relação aos divorciados recasados é reforçada a sua “comunhão eclesial” e o acompanhamento das suas situações que não deve ser visto como uma debilidade da indissolubilidade do matrimónio mas uma expressão de caridade.
Referidas também as situações dos matrimónios mistos e daqueles com disparidade de culto, e a situação das famílias que têm dentro de si pessoas com tendência homossexual, insistindo no respeito para com elas e na recusa de qualquer discriminação injusta e de todas as formas de agressão e violência. No final do capítulo uma especial nota para o tema da perda das pessoas queridas e também da viuvez.
Capítulo sétimo: “Reforçar a educação dos filhos”
O capítulo sétimo é integralmente dedicado à educação dos filhos: a sua formação ética, o valor da sanção como estímulo, o realismo paciente, a educação sexual, a transmissão da fé e, mais em geral, a vida familiar como contexto educativo. É ressaltado pelo Santo Padre que “o que interessa acima de tudo é gerar no filho, com muito amor, processos de amadurecimento da sua liberdade, de preparação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia” (AL 261).
A secção dedicada à educação sexual intitula-se muito expressivamente: «Sim à educação sexual». Sustenta-se a sua necessidade e formula-se a interrogação de saber ”se as nossas instituições educativas assumiram este desafio (…) num tempo em que se tende a banalizar e empobrecer a sexualidade”. A educação sexual deve ser realizada ”no contexto duma educação para o amor, para a doação mútua” (AL 280) – lê-se na Exortação. É feita uma advertência em relação à expressão ”sexo seguro”, pois transmite ”uma atitude negativa a respeito da finalidade procriadora natural da sexualidade, como se um possível filho fosse um inimigo de que é preciso proteger-se. Deste modo promove-se a agressividade narcisista, em vez do acolhimento”. (AL 283).
Capítulo oitavo: “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”
O capítulo oitavo faz um convite à misericórdia e ao discernimento pastoral diante de situações que não correspondem plenamente ao que o Senhor propõe. O Papa usa aqui três verbos muito importantes: ”acompanhar, discernir e integrar”, os quais são fundamentais para responder a situações de fragilidade, complexas ou irregulares. Em seguida, apresenta a necessária gradualidade na pastoral, a importância do discernimento, as normas e circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral e, por fim, aquela que é por ele definida como a ”lógica da misericórdia pastoral”.
As situações ditas de irregulares devem ter um discernimento pessoal e pastoral e – segundo a Exortação –  “os batizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes formas possíveis”.
Em particular, o Santo Padre afirma numa nota de pé de página que “em certos casos poderá existir também a ajuda dos sacramentos”, recordando que o confessionário não deve ser uma sala de tortura e que a Eucaristia “não é um prémio para os perfeitos, mas um alimento para os débeis”.
Mais em geral, o Papa profere uma afirmação extremamente importante para que se compreenda a orientação e o sentido da Exortação: ”é compreensível que não se devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os casos. É possível apenas um novo encorajamento a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que “o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos” (AL 300).
O Papa desenvolve em profundidade as exigências e características do caminho de acompanhamento e discernimento em diálogo profundo entre fiéis e pastores. A este propósito, faz apelo à reflexão da Igreja ”sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes” no que respeita à imputabilidade das ações e, apoiando-se em S. Tomás de Aquino, detém-se na relação entre «as normas e o discernimento», afirmando: ”É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem descuidar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à categoria de norma” (AL 304).
Espaço ainda neste capítulo para a lógica da misericórdia pastoral e para o convite do Papa Francisco nas suas palavras finais: «Convido os fiéis, que vivem situações complexas, a aproximarem-se com confiança para falar com os seus pastores ou com leigos que vivem entregues ao Senhor. Nem sempre encontrarão neles uma confirmação das próprias ideias ou desejos, mas seguramente receberão uma luz que lhes permita compreender melhor o que está a acontecer e poderão descobrir um caminho de amadurecimento pessoal. E convido os pastores a escutar, com carinho e serenidade, com o desejo sincero de entrar no coração do drama das pessoas e compreender o seu ponto de vista, para ajudá-las a viver melhor e reconhecer o seu lugar na Igreja» (AL 312).
Capítulo nono: “Espiritualidade conjugal e familiar”
O nono capítulo é dedicado à espiritualidade conjugal e familiar, ”feita de milhares de gestos reais e concretos” (AL 315). Diz-se com clareza que ”aqueles que têm desejos espirituais profundos não devem sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas é um percurso de que o Senhor Se serve para os levar às alturas da união mística” (AL 316). Tudo, ”os momentos de alegria, o descanso ou a festa, e mesmo a sexualidade são sentidos como uma participação na vida plena da sua Ressurreição” (AL 317).
No parágrafo conclusivo, o Papa afirma: ”Nenhuma família é uma realidade perfeita e confecionada duma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. (…). Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver neste estímulo constante. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! (…). Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida” (AL 325).