Todo carisma se dá na confluência de pelo menos três elementos, entre si diversos, mas, ao final, em surpreendente afinidade: Deus e sua gratuidade, o ser humano e sua sensibilidade, o tempo e suas vicissitudes. Sim, Deus é a fonte dos carismas, e os distribui a quem, quando e como lhe aprouver: não há como merecê-los nem forçá-los, são gratuitos. Ao concedê-los, Deus respeita a sensibilidade humana, que tem poder de acolhida ou recusa, de adesão ou fuga à graça. Ao longo do caminhar da Igreja, o Espírito Santo irrompe em diferentes tempos e lugares, obedecendo a desígnios que desconhecemos, surpreendendo-nos por vezes com inesperadas primaveras. Nesse caminhar afloram os carismas. Mas que são eles?
O carisma é graça (charis), dom, manifestação do Espírito em pessoas escolhidas, habilitando-as a iniciativas novas e especiais (vocação) em favor da comunidade eclesial, seja na linha do serviço, do testemunho, da profecia, da misericórdia, da evangelização… Visa mais o bem dos outros que o próprio. O Espírito Santo provê a Igreja de pessoas carismáticas que possam responder criativa e evangelicamente às urgências dos tempos e lugares (sinais dos tempos). Não obstante sua absoluta gratuidade, o carisma conta sempre com a participação humana: sensibilidade, acolhida, docilidade, compromisso das pessoas a quem é concedido…
O Carisma fundacional de uma família religiosa, como a Família Franciscana, resulta de uma experiência do Espírito, que se torna experiência fundante e que, em seguida, passa aos discípulos e discípulas para ser vivida, custodiada e desenvolvida em proveito do povo de Deus e do Reino. É claro que nos fundadores e fundadoras existe uma especificidade do carisma que lhes é própria e exclusiva. É claro também que o carisma transmitido não é nenhuma camisa de força, inflexível, a ser reproduzido repetitivamente, na marra, mas um dom benfazejo, aberto à dinâmica permanente do Espírito, que impele as pessoas a recriarem, no tempo presente, uma história parecida com a das origens, sob o influxo do mesmo espírito. O discernimento espiritual é imprescindível para a fidelidade criativa ao carisma dos fundadores.
Quando Francisco, naquele certo dia, encontrou-se com o Evangelho, este lhe soou como uma revelação e um convite: a exemplo de Jesus Cristo, tornar-se pequeno, menor, despojado de poder e riqueza, e ir, assim, pelo mundo anunciando o Reino de Deus e a conversão. Francisco e, em seguida, Clara e os respectivos grupos desencadearam, assim, um movimento evangélico-penitencial que, em boa parte, correspondia aos anseios do tempo.
Seria, seguramente, inadequado considerar a vida franciscana quase como uma verdade caída do céu, da qual Francisco ou Clara de Assis seriam apenas simplórios receptores ou meros executores de uma revelação sobrenatural. As fontes testemunham que, ao ouvir o referido texto do Evangelho, Francisco teria dito, segundo a versão de Celano: É isto que eu quero, é isto que eu procuro, é isto que eu desejo fazer do íntimo do coração. Ou, segundo a versão do Anônimo Perusino: Eis o que desejamos, eis o que procurávamos… Esta será a nossa regra. Parece uma significativa coincidência. É como se Francisco, desde sempre, procurasse aquilo que ora lhe é revelado e encontrasse, finalmente, o que, nas penumbras de suas inquietudes, há tempos, buscava. O Evangelho não lhe é estranho, antes corresponde em cheio a suas aspirações, como se fosse a clara e convincente resposta a suas próprias buscas. Desde sua experiência de prisioneiro, Francisco vivia decepcionado com o sistema de então, fundado na servidão e em relações de vassalagem, e sonhava com outras formas de convivência. Tudo isto constitui o chão de onde ele ouve a voz do Evangelho.
____________________________________________________
1. Verdadeiramente, tudo quanto há de belo na história do mundo foi feito às nossas ocultas por um misterioso acordo entre a humilde e ardente paciência do homem e a doce piedade de Deus (E. Leclerc, Desterro e ternura. Braga: Ed. Franciscana, 7).
2.Cf. S. Congregação para os Religiosos e S. Congregação para os Bispos, Mutuae Relationes. 1978.
Trecho do Documento da FFB “Reviver o Sonho de Francisco e Clara de Assis no Chão da América Latina e do Caribe”
Fonte: http://www.franciscanos.org.br/?p=46242