quinta-feira, 4 de outubro de 2012

SÃO FRANCISCO DE ASSIS: A FORMA EVANGÉLICA DE VIDA


 
 
 
Frei Nilo Agostini, ofm

 

            A forma evangélica de vida constitui-se no coração da evangelização. Profundamente enraizados em Jesus Cristo e seu Evangelho, nós Frades Menores sentimos residir aí a nossa razão de ser. E este modo próprio de vida encontra na vida de fraternidade seu lastro de segurança e garantia de fecundidade. Desde ela, somos enviados como frades menores itinerantes a evangelizar com a vida e a palavra.


1. “É isso que eu quero, isso que eu procuro, é isso que eu desejo de todo o coração” (1Cel 22)

            Textos evangélicos ligados ao seguimento de Jesus Cristo[1]e à missão[2] estão presentes na definição do projeto de vida de Francisco. É bom notar que “trata-se de textos que remetem ao modelo de vida dos carismáticos itinerantes da Igreja primitiva, inaugurado por Jesus e os apóstolos”[3].

            Biógrafos, como Tomás de Celano e São Boaventura, relatam, de maneira quase idêntica, como Francisco intuiu o seu projeto de vida ao ouvir a leitura da passagem do Evangelho, onde se fala do envio dos apóstolos para a missão. “Francisco, ouvindo que os discípulos não deviam possuir ouro, prata ou dinheiro, nem levar bolsa ou sacola, nem pão, nem bastão pelo caminho, nem ter calçados ou duas túnicas, mas pregar o reino de Deus e a penitência, entusiasmou-se imediatamente no espírito de Deus: ‘É isso que eu quero, isso que procuro, é isso que eu desejo fazer de todo o coração’”[4].

            O Anônimo Perusino, por sua vez, relaciona a intuição de Francisco a outro episódio[5]. Acompanhado de Bernardo de Quintavalle e de um certo Pedro, Francisco dirigiu-se à igreja de São Nicolau, onde, após ter rezado, abre o Evangelho e depara-se com as três passagens: “Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres, e terás um tesouro no céu” (Mt 19,21). “Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,14). “Não leveis coisa alguma para o caminho, nem bastão, nem mochila, nem pão, nem dinheiro, nem tenhais duas túnicas” (Lc 9,3). Ouvindo estas palavras, Francisco e seus companheiros exclamaram: “Eis o que mais queríamos, eis o que procurávamos”, acrescentando, então, Francisco: “Esta será a nossa regra... Ide pôr em prática o conselho que ouvistes do Senhor”.

            Ao se digirem a Roma para pedir a aprovação de seu modo de vida, por volta de 1209/10, Francisco e seus companheiros não queriam outra coisa senão a permissão para viver um modo de vida pobre, a exemplo de Jesus e dos apóstolos, e pregar. Não aprovar tal modo de vida seria desaprovar o próprio Evangelho. Receberam, sim, da parte do Papa Inocêncio III, a apovação do modo de vida e a licença de pregar a penitência[6]. Inicia-se, a partir de então, um primeiro período (1209-1221), denominado de “heróico”, na vida dos primeiros frades. Sua vida e fervorosa pregação atraíam multidões, com grande número de ingressos na Ordem. Nem mesmo faltou a tentativa do martírio entre os sarracenos. O carisma pessoal de Francisco e de seus companheiros caracterizaram preponderantemente este período.

            Entre os anos 1223 e 1945, identifica-se um outro período na Ordem, iniciado já em vida de Francisco. Trata-se da “virada intelectual da Ordem”[7], que coincide com a necessidade de uma maior organização da mesma e de uma melhor preparação dos frades pregadores. O Concílio de Latrão, de 1215, já havia insistido na necessidade de uma boa formação dos pregadores, isto para poderem combater abusos e heresias. O próprio Francisco chega a se preocupar com a idoneidade dos pregadores, solicitando para isso a devida verificação e aprovação por parte do ministro geral[8]. E para os que porventura não fossem idôneos a este ofício, Francisco lembrava que “todos os irmãos podem pregar pelas obras”[9].

 
2. Uma fraternidade apostólico-itinerante

            Para Francisco, a centralidade do seguimento de Jesus Cristo era o eixo norteador. Sabemos como este seguimento constitui-se num fenômeno alimentador da espiritualidade cristã, bem presente nos movimentos religiosos pauperísticos dos séculos XI e XII[10]. As próprias Cruzadas, com a reconquista dos lugares santos, e abrindo-os à peregrinação, permitiram que se acentuasse a busca das fontes evangélicas, com ênfase na espiritualidade do Jesus histórico[11]. Muitos foram os movimentos que se propunham a imitar o exemplo da ‘pessoa’ Jesus Cristo, sobretudo na pobreza e missão. São Francisco pertence a este contexto de busca.

            Fixando-se na pessoa de Cristo e os Apóstolos, lança Francisco as primeiras bases do ideal de fraternidade[12]. Para estudiosos, como Gerd Theissen[13], este modelo de fraternidade realizado por Cristo e pelos apóstolos caracteriza-se como um movimento, calcado sobre o papel dos carismáticos itinerantes, dos simpatizantes das comunidades locais e o papel do Revelador, o Filho do Homem.

            Francisco, ao precisar que a regra e a vida dos Frades Menores é “observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo”[14] ou “viver segundo a forma do santo Evangelho”[15], inspira-se “no modelo realizado por Jesus Cristo e os apóstolos”[16]. Partindo deste enraizamento fundacional, estudiosos do movimento franciscano definem a fraternidade franciscana como uma “fraternidade apostólico-itinerante[17].


3. “O mundo inteiro é o seu espaçoso cláustro” (J. de Vitry)

            Mesmo com algumas dúvidas iniciais, se deveria viver entre o povo ou na solidão, fica logo claro para Francisco que deveria “salvar almas”, “viver para os outros”, “pregar a palavra de Deus ao povo”, “ser arauto do Evangelho”[18]. “Como os apóstolos, Francisco sente-se chamado a seguir a Jesus Cristo, não só para estar em sua companhia, mas também para ser enviado a pregar (cf. Mc 3,14-15). Para Francisco e os movimentos pauperísticos em geral, o seguimento de Jesus Cristo é inseparável da missão. Por isso, ao escrever a sua Regra, desenvolve como motivo inspirador: o conteúdo da missão dos apóstolos (Mc 10,7-13), que ouviu na igreja da Porciúncula, e as três passagens evangélicas (Mt 19,21; Lc 9,3; Mt 16,24), lidas com Bernardo de Quintavalle na igreja de S. Nicolau. Foram estes os textos que inspiraram a ‘forma de vida evangélica’, característica da Ordem dos Frades menores”[19].


            O envio à missão faz parte do nascimento da Ordem dos Frades Menores. O Papa Inocêncio III, ao receber Francisco e seus companheiros que lhe submetem sua regra, dá-lhes a bênção e o seguinte envio: “Ide com o Senhor, irmãos, e conforme o Senhor se dignar inspirar-vos, pregai a todos a penitência”[20]. O Papa João Paulo II, em sua carta por ocasião do Capítulo Geral de San Diego, nos lembra este envio, acrescentando: “De minha parte, retomo hoje este envio à missão, e dirijo-o a vós. Assim como, de fato, a existência da vossa Ordem é devida a este primeiro envio, de igual modo hoje a missão que ela recebe da Igreja, na pessoa do Sucessor de Pedro, dá-lhe a sua razão de ser”[21].

            O seguimento de Jesus Cristo e o envio à missão faz dos frades menores evangelizadores itinerantes, para os quais “o mundo inteiro é o seu espaçoso claustro”, na expressão de Jacques de Vitry[22]. Entendemos, então, que Francisco, na Regra Bulada, chegue a falar da Ordem como uma fraternidade de peregrinos e viandantes[23], sendo os frades pacíficos e humildes[24], andando pelo mundo sem nada de próprio[25], trabalhando com fidelidade e devoção[26].


4. “Sempre viveste o que falaste” (2Cel 130)

            Ciente do chamado à missão, Francisco tem clareza que não há frade que não possa fazê-lo, pois “todos os irmãos podem pregar pelas obras”[27]. E apontava sempre para Jesus Cristo, “caminho, verdade e vida”[28], solicitando que “todos os irmãos se esforçassem por imitar a humildade e pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo”[29]. A qualidade evangélica de vida é o substrato primeiro e decisivo, garantia da consistência do próprio anúncio. A missão que nos é confiada realiza-se pelo testemunho de vida e pelo testemunho da palavra.

            Para Francisco, o coração de nossa vocação está em “viver o santo Evangelho”[30]. Nisto ele colocava todo o seu empenho[31], desejoso que seus frades fossem “discípulos do Evangelho”[32]. As palavras do Evangelho transformam-se para Francisco em “palavras do Espírito Santo, que são espírito e vida”[33]. Seu primeiro biógrafo fala dele com as seguintes palavras: “Pregando freqüentemente a palavra de Deus a milhares de pessoas, tinha tanta segurança como se estivesse conversando com um companheiro. Olhava a maior das multidões como se fosse uma pessoa só e falava a cada pessoa com todo o fervor como se fosse uma multidão”[34].

 
            Todo esse vigor de Francisco calcava-se na unidade de seu ser, o que fez Tomás de Celano escrever: “Sempre viveste o que falaste, sempre foste o mesmo por fora e por dentro, sempre foste o mesmo como súdito e como superior!”[35] Em Francisco transbordava em abundância o que o habitava. Centrado na pessoa de Cristo, numa “total entrega ao Senhor”[36], “acima de tudo, desejava aniquilar-se para estar com Cristo”[37]. Escolheu a condição dos pequenos, na minoridade e submissão a todos[38]. Quis que os irmãos se chamassem de “frades menores”[39], apontando para uma condição real de vida, decisiva para reconhecer se um irmão era realmente movido pelo Espírito do Senhor[40].

            A minoridade alia-se à pobreza e à simplicidade como alicerces do frade menor. A pobreza ocupa um lugar de destaque, sem abstrações, e, por isso, expressão de uma vida bem concreta. Lemos na regra: “Os irmãos não tenham propriedade sobre coisa alguma nem sobre casa nem lugar nem outra coisa qualquer; mas, como peregrinos e viandantes (cf. 1Pd 2,11) neste mundo, sirvam ao Senhor em pobreza e humildade”[41].

            Esta forma evangélica de vida ganha concreção e razão de ser na vida em fraternidade. Sem copiar modelos já existentes, Francisco acolhe os irmãos como dádiva de Deus, reunindo-os em fraternidade. “E depois que o Senhor me deu irmãos ninguém me mostrou o que eu deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do Santo Evangelho”[42]. A fraternidade passa a ser o lugar de cultivo do carisma de Francisco; cultivo do ser autêntico, simples e pobre, sem duplicidades e, por isso, sempre disponível; lugar da acolhida do Evangelho de Cristo e das palavras do Espírito Santo (e o seu santo modo de operar), que são espírito e vida[43].



[1] Cf. Mt 16,24; 19,21.
[2] Cf. Lc 9,3.
[3] Ludovico GARMUS, O seguimento de Jesus Cristo em S. Francisco, texto policopiado, p. 13; Cf. Théophile DESBONNETS, Da intuição à instituição, Petrópolis, Ed. Vozes/CEFEPAL, 1987, p. 18-30.
[4]1Cel 22; cf. LegM 3,1 e Juliano de Spira, Vita Sancti Francisci, 15-16.
[5] Cf. AnPer 11.
[6] Cf. Leg3C 43-53; 1Cel 32, 33, 89.
[7] Cf. Lorenzo DI FONZO, “L’apostolato intellettuale”, Miscellanea Francescana, 94 (1994), 525-609.
[8] Cf. RegNB 17,1-2; RegB 9,2.
[9] Cf. RegNB 17,3.
[10] Cf. Herbert GRUNDMANN, Movimenti religiosi nel medioevo, Bologna, Società Ed. Il Mulino, 1980;  Ildefonso SILVEIRA, Itinerário de São Francisco de Assis, col .“Cadernos do IFAN” n. 12, Bragança Paulista, EDUSF, 1995, p. 7-47.
[11] Cf. Lothar HARDICK, Santo Antônio, vida e doutrina, Peetrópolis, Ed. Vozes/CEFEPAL, 1981, p. 36; Augustin FILCHE, Victor MARTIN (ed.), Historia de la Iglesia, vol IX: Las Cruzadas, Valencia, EDICEP, 1977, p. 621.
[12] Cf. Martinho CONTI, Leitura bíblica da regra franciscana, Petrópolis, Ed. Vozes, CEFEPAL, 1983, p. 88.
[13] Gerd THEISSEN, Sociologia do movimento de Jesus, Petrópolis/São Leopoldo, Ed. Vozes/Ed. Sinodal, 1989.
[14] Cf. RegB 1,1.
[15] Cf. Test 14; Leg3C 29.
[16] Cf. Martinho CONTI, op. cit., p. 84-100.
[17] Cf. ibidem, e, sobre o movimento franciscano, David FLOOD, Frei Francisco e o Movimento Franciscano, Petrópolis, Ed. Vozes/CEFEPAL, 1986.
[18] Cf. Legm 2,5.
[19] Ludovico GARMUS, op. cit., p. 11.
[20] 1Cel 33.
[21] Capítulo Geral de San Diego, A Ordem e a Evangelização Hoje, n. 5.
[22] Jacques DE VITRY, Historia Occidentalis, n. 17.
[23] Cf. RegB 6,2.
[24] Cf. ibidem, 3,11.
[25] Cf. ibidem, 6,1.
[26] Cf. ibidem, 5,1.
[27] Cf. RegNB 17,3.
[28] Cf. Adm 1,1.
[29] Cf. RegNB 9,1.
[30] Cf. RegB 1,1.
[31] Cf. 1Cel 84.
[32] Cf. LegM 11,1.
[33] Cf. Lázaro IRIARTE, Vocazione francescana - Sistesi degli ideali de san Francesco e di santa Chiara, Casale Monferrato, Ed. Piemme, 1987, p. 90.
[34] 1Cel 72.
[35] 2Cel 130; cf. 1Cel 115.
[36] Cf. LegM, Milagres, X,8.
[37] 1Cel 71.
[38] Cf. RegNB 5,15; 7,3.
[39] Cf. ibidem, 6,3.
[40] Cf. Adm 12,1-3.
[41] RegB 6.
[42] Test 4.
[43] Cf. 2CFi 3; Adm 7,4; Test 13.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

"A corrupção já ultrapassou os níveis suportáveis e de decência"


Biblioteca do Mosteiro de São Bento, São Paulo.


















Nesta entrevista, concedida ao Jornalista Armando C. Serra Negra, do "Diário do Comércio,  o Mestre e Doutor Frei Nilo Agostini fala sobre a corrupção em nosso país.

Atuando na área de Teologia, com especialização em Ética/Moral, Frei Nilo lembra que somos seres éticos por excelência. "Precisamos recuperar esta base para o sustento da vida. Qualquer forma de organização entre os seres humanos tem necessidade da ética. Ela mobiliza o ser humano e o torna capaz de discernimento e tem na alteridade o seu lado fecundo de respeito ao outro", diz.

Frei Nilo é coordenador e professor dos Cursos de Teologia (graduação) da Faculdade João Paulo II, de Marília, SP,  que atende a Região Eclesiástica de Botucatu, SP; bem como é coordenador do Curso de Teologia (graduação), da Faculdade de São Bento, de São Paulo (capital). É igualmente professor no Curso de Teologia Pio XI, do Unisal (Centro Universitário Salesiano), em São Paulo (capital) e professor do ITELSÉ, Instituto de Teologia da Região Sé, da Arquidiocese de São Paulo (capital).

Frei Nilo se tornou mestre em Teologia pela Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Ciências Humana de Strasbourg, França (1985) e Doutor em Teologia, pela Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Ciências Humanas de Strasbourg, França (1989).


Em que medida a corrupção é inerente à natureza humana?
O ser humano tem um desejo ilimitado de realização e felicidade, mas nem sempre contenta-se com o que pode realizar. Se moralmente fraco, resvala, não raro, na frustração da infelicidade, e se entrega facilmente ao desejo de consumir, à busca do poder e às prome...
Essas mirabolantes para preencher sua vida. O mal surge e instala-se, atingindo o seu âmago, em um espectro que se alastra na sociedade. Sob múltiplas formas, a corrupção translitera o mal e aninha-o no próprio ethos humano, sugando a natureza, numa depredação voraz e sem limites; e parece dominar, desequilibrando o ser humano em suas relações fundamentais (consigo, com os outros, com a natureza e com Deus).

Qual a lição do Pecado Original?
A origem do mal vem apontada como consequência do pecado cometido nos primórdios da humanidade. Existe uma “estruturação” do pecado que dá origem a novos pecados. Perde-se a noção da responsabilidade, da solidariedade e do cuidado do bem comum. Segundo o Novo Testamento, a vitória sobre o mal não será obtida num movimento solitário do ser humano, de pretensa autossuficiência, prescindindo dos outros e do próprio Deus.

Aproximadamente - ou exatamente - quantas passagens bíblicas (Velho e Novo Testamento) referem-se à corrupção?
Os registros são numerosos. Vejamos alguns que melhor se adequam ao atual contexto político: Toda corrupção e injustiça desaparecerão, mas a fidelidade permanece para sempre (Ecl. 40,12); Não deixarás o teu Santo experimentar a corrupção” (At. 13,35); “Que o direito flua como água e a justiça como riacho perene”, podemos afirmar seguindo o pensamento do Profeta Amós (Am. 5,21-24). Os profetas foram os que mais denunciaram a corrupção, fazendo seguidas menções a questões sociais. Para eles, o ideal é buscar o Direito e a Justiça (mišpat e sedaqâ), e não deixam de apontar para diversos problemas: a administração da justiça nos tribunais, as injustiças praticadas no comércio, a concentração de terras, os salários injustos, os pesados tributos e impostos, a usura, a ganância.

O que a Corrupção significa para Deus?
A relação com Deus, já no Antigo Testamento, exige que se viva segundo o direito e a justiça.
Os autores do Novo Testamento estão também cientes dos perigos das riquezas, quando a nossa atitude diante delas é de cobiça ou de avareza (Lc 12,13-21), o que provoca a corrida pela acumulação de riquezas (Mt 6,21-22). Fala-se, então, do poder negativo das riquezas (Mc 4,19; Mt 13,22; Lc 8,14). Para São Paulo, é a avareza a que mais se opõe à ordenação cristã dos bens temporais, uma idolatria (Cl 3,5; Ef 5,5) do avarento que coloca seu fim último nos bens materiais. São Tiago cita claramente duas categorias de maus ricos: os comerciantes presunçosos, que só pensam em ganhar dinheiro (4,13-17), e os ricos vorazes, que vivem no luxo e devassidão (5,1-6). Estudiosos sérios demonstram com clareza, que tudo isso reflete no fundo um autêntico desinteresse por Deus.

E para a Criação?
A Bíblia é clara em afirmar que “Deus viu que era bom tudo quanto havia criado” (Gn 1,31). São Basílio (329-279) denuncia os maus políticos: “Tornaste-te um explorador ao apropriar-te dos bens que recebeste para administrá-los”, advertindo-os que “Se alguém se condena, não será por ter possuído riquezas, mas por havê-las viciado com desejos pecaminosos e tê-las empregado mal”. São Tomás de Aquino (1225-1274) é proverbial: “O que faz injusto um governo é confundir o bem particular do governante, com o bem público. Quanto mais se afasta do bem comum, tanto mais injusto é o regime; ora, mais se afasta do bem comum a oligarquia, na qual se busca o bem de uns poucos, do que na democracia, na qual se procura o de muitos; e ainda mais se aparta do bem comum na tirania, em que se busca somente o bem de um”.

A corrupção é um pecado mortal?
Trata-se de uma ação humana, passível de imputabilidade, acusação e de censura; a corrupção pode ser um pecado mortal se reunir as seguintes condições: se a matéria for grave (aqui entram considerações como montantes desviados e o quanto isso lesou os cidadãos e sua dignidade, atentando contra o bem comum), se foi cometido com plena consciência, em plena liberdade e deliberação.

Relacione e comente, sob o prisma político, as principais passagens bíblicas em que o tema aparece, e suas consequências espirituais.
A minha análise segue a linha de identificar hoje três grandes idolatrias: do dinheiro, do poder e do prazer. Lembro que é na idolatria que o pecado se mostra em toda a sua realidade perniciosa. Ela está fortemente disseminada, pelas estruturas injustas, pela corrupção tão fortemente vulgarizada, pela morte violenta, massacres, genocídios, desaparecimento de povos indígenas, conflitos armados, morte de culturas, morte religiosa pela proliferação de seitas alienantes, e toda forma de desumanização. Os ídolos do dinheiro, do poder e do prazer são poderosos e insaciáveis. A idolatria do dinheiro leva ao egoísmo e à ganância, seduzindo pela ilusão do ter, em detrimento do ser, e consequente absolutização do poder político, social e econômico, originando toda sorte de violência estrutural e mantendo no subdesenvolvimento os nossos povos. A Conferência latino-americana de Bispos, reunida em Puebla, México, em 1879, já dizia que “é preciso anunciar uma proposta concreta de restabelecimento da justiça, da igualdade dos cidadãos, da dignidade humana’. O ídolo do prazer é apresentado como a mãe de todos os ídolos, sendo o objetivo último a posse dos outros dois: poder + dinheiro = prazer. Está no cume da tríade consumista dos desejos pós-modernos. Esta idolatria provoca a perversão da própria cultura como hedonismo, o consumismo e a corrupção.

Em face da corrupção, como vê a situação política brasileira?
A corrupção em nosso país é avassaladora, nefasta, que compromete as políticas sociais, invade os órgãos públicos, infiltra-se nos poderes da República. Constitui-se numa grave crise ética, e já ultrapassou os níveis suportáveis, e de decência. Pior é que se alastrou de tal forma, que a sociedade tem aceitado como normal o que não se justifica eticamente (por exemplo, o Caixa 2). Em nosso país, nos deparamos a toda hora com relações de conivência, de simbiose, de cobertura de interesses vários para benesses particulares, em detrimento do público, numa política de bastidores, com seus conchavos, que compromete o jogo democrático, onera a sociedade e fere a liberdade. Neste cenário, o compromisso e a honestidade são vividos num contexto de sedução permanente, capaz de afastar toda possibilidade de diálogo e exilar a própria ética.

Se as coisas continuarem seguindo como estão, nessa espiral de corrupção social e política, o que poderá acontecer com a sociedade brasileira em termos materiais e espirituais?
Sem a superação da crise ética, as atuais mudanças sociais e culturais não poderão conduzir a uma sociedade justa e digna. Ao contrário, poderá haver uma ulterior degradação das relações sociais e um aumento da injustiça, da violência e da insensatez. Há uma crise de legitimação das próprias instituições. Até a lei, em sua efetivação está debilitada pelo abismo existente entre o que nelas está previsto e a realidade social sugada pela corrupção e falta de ética. A lei não é garantia dos direitos do cidadão, pela parcialidade com que trata nossa população, discricionária no trato dos próprios crimes, favorecendo uns e sendo feroz com outros. Isto é apenas a ponta do iceberg de um projeto político-social marcado pela parcialidade, pela exclusão, pela onerosa falta de ética. O assalto à “coisa” pública (res-publica) tornou-se o prato cotidiano justamente por parte daqueles que deveriam velar por ela, custodiá-lo em nome do povo.

Dê a sua opinião sobre a corrupção no Brasil e no mundo nos dias de hoje, indicando onde fundamentar-se para continuar encarando os fatos quotidianos, fortalecendo-se na Esperança de mudança.
Já pude escrever em meu livro “Ética: Diálogo e Compromisso” que é hora de voltarmos à ética como o alicerce do ser humano desde sua raiz mais profunda. Somos seres éticos por excelência. Precisamos recuperar esta base para o sustento da vida. Qualquer forma de organização entre os seres humanos tem necessidade da ética. Ela mobiliza o ser humano e o torna capaz de discernimento e tem na alteridade o seu lado fecundo de respeito ao outro. Que fiquem longe as palavras aliciadoras, os discursos manipuladores. Isso requer respeito das pessoas, coerência nas relações, transparência em qualquer empreendimento. Deixar de ser ético é cavar um buraco debaixo dos próprios pés; a rigor, viver sem ética é ser ineficaz.

Qual sua expectativa pessoal acerca do julgamento do Mensalão?
Minha expectativa é que o julgamento do mensalão se paute realmente na justiça, fora do jogo de conivências, pressões, conchavos de bastidores que oneram a Democracia e desprestigiam a República. Que seja uma lição de cidadania, civilidade e moralidade ao nosso povo. Que isso ocorra em todos os julgamentos realizados neste País, sem distinções de cidadãos; somos iguais em dignidade e iguais perante a lei. Exorto os Ministros à lisura, à imparcialidade, à isenção ante as influências externas. Espero que não tenhamos que repetir as palavras atribuídas ao Cardeal Renard, de Lyon, França, quando disse: “O que é legal não é necessariamente moral”. Senhores ministros, estejam à altura de sua missão!

Entrevista para o Jornal “Diário do Comércio” de São Paulo, edição dos dias 1, 2 e 3 de setembro de 2012