Frei Nilo
Agostini, ofm
A forma evangélica de vida
constitui-se no coração da evangelização. Profundamente enraizados em Jesus
Cristo e seu Evangelho, nós Frades Menores sentimos residir aí a nossa razão de
ser. E este modo próprio de vida encontra na vida de fraternidade seu lastro de
segurança e garantia de fecundidade. Desde ela, somos enviados como frades
menores itinerantes a evangelizar com a vida
e a palavra.
1. “É isso que eu quero, isso que eu procuro, é isso
que eu desejo de todo o coração” (1Cel 22)
Textos evangélicos ligados ao
seguimento de Jesus Cristo[1]e
à missão[2]
estão presentes na definição do projeto de vida de Francisco. É bom notar que
“trata-se de textos que remetem ao modelo de vida dos carismáticos itinerantes
da Igreja primitiva, inaugurado por Jesus e os apóstolos”[3].
Biógrafos, como Tomás de Celano e
São Boaventura, relatam, de maneira quase idêntica, como Francisco intuiu o seu
projeto de vida ao ouvir a leitura da passagem do Evangelho, onde se fala do
envio dos apóstolos para a missão. “Francisco, ouvindo que os discípulos não
deviam possuir ouro, prata ou dinheiro, nem levar bolsa ou sacola, nem pão, nem
bastão pelo caminho, nem ter calçados ou duas túnicas, mas pregar o reino de Deus
e a penitência, entusiasmou-se imediatamente no espírito de Deus: ‘É isso que
eu quero, isso que procuro, é isso que eu desejo fazer de todo o coração’”[4].
O Anônimo Perusino, por sua vez, relaciona a intuição de Francisco a
outro episódio[5].
Acompanhado de Bernardo de Quintavalle e de um certo Pedro, Francisco
dirigiu-se à igreja de São Nicolau, onde, após ter rezado, abre o Evangelho e
depara-se com as três passagens: “Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens,
dá-os aos pobres, e terás um tesouro no céu” (Mt 19,21). “Se alguém quiser vir
após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,14). “Não
leveis coisa alguma para o caminho, nem bastão, nem mochila, nem pão, nem
dinheiro, nem tenhais duas túnicas” (Lc 9,3). Ouvindo estas palavras, Francisco
e seus companheiros exclamaram: “Eis o que mais queríamos, eis o que
procurávamos”, acrescentando, então, Francisco: “Esta será a nossa regra... Ide
pôr em prática o conselho que ouvistes do Senhor”.
Ao se digirem a Roma para pedir a
aprovação de seu modo de vida, por volta de 1209/10, Francisco e seus
companheiros não queriam outra coisa senão a permissão para viver um modo de
vida pobre, a exemplo de Jesus e dos apóstolos, e pregar. Não aprovar tal modo
de vida seria desaprovar o próprio Evangelho. Receberam, sim, da parte do Papa
Inocêncio III, a apovação do modo de vida e a licença de pregar a penitência[6].
Inicia-se, a partir de então, um primeiro período (1209-1221), denominado de
“heróico”, na vida dos primeiros frades. Sua vida e fervorosa pregação atraíam
multidões, com grande número de ingressos na Ordem. Nem mesmo faltou a
tentativa do martírio entre os sarracenos. O carisma pessoal de Francisco e de
seus companheiros caracterizaram preponderantemente este período.
Entre os anos 1223 e 1945,
identifica-se um outro período na Ordem, iniciado já em vida de Francisco.
Trata-se da “virada intelectual da Ordem”[7],
que coincide com a necessidade de uma maior organização da mesma e de uma
melhor preparação dos frades pregadores. O Concílio de Latrão, de 1215, já
havia insistido na necessidade de uma boa formação dos pregadores, isto para
poderem combater abusos e heresias. O próprio Francisco chega a se preocupar
com a idoneidade dos pregadores, solicitando para isso a devida verificação e aprovação
por parte do ministro geral[8].
E para os que porventura não fossem idôneos a este ofício, Francisco lembrava
que “todos os irmãos podem pregar pelas obras”[9].
2. Uma fraternidade apostólico-itinerante
Para Francisco, a centralidade do
seguimento de Jesus Cristo era o eixo norteador. Sabemos como este seguimento constitui-se num fenômeno
alimentador da espiritualidade cristã, bem presente nos movimentos religiosos
pauperísticos dos séculos XI e XII[10].
As próprias Cruzadas, com a reconquista dos lugares santos, e abrindo-os à
peregrinação, permitiram que se acentuasse a busca das fontes evangélicas, com
ênfase na espiritualidade do Jesus histórico[11].
Muitos foram os movimentos que se propunham a imitar o exemplo da ‘pessoa’
Jesus Cristo, sobretudo na pobreza e missão. São Francisco pertence a este
contexto de busca.
Fixando-se na pessoa de Cristo e os
Apóstolos, lança Francisco as primeiras bases do ideal de fraternidade[12].
Para estudiosos, como Gerd Theissen[13],
este modelo de fraternidade realizado por Cristo e pelos apóstolos
caracteriza-se como um movimento,
calcado sobre o papel dos carismáticos itinerantes, dos simpatizantes das
comunidades locais e o papel do Revelador, o Filho do Homem.
Francisco, ao precisar que a regra e
a vida dos Frades Menores é “observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cristo”[14]
ou “viver segundo a forma do santo Evangelho”[15],
inspira-se “no modelo realizado por Jesus Cristo e os apóstolos”[16].
Partindo deste enraizamento fundacional, estudiosos do movimento franciscano definem
a fraternidade franciscana como uma “fraternidade apostólico-itinerante”[17].
3. “O mundo inteiro é o seu espaçoso cláustro” (J. de
Vitry)
Mesmo com algumas dúvidas iniciais,
se deveria viver entre o povo ou na solidão, fica logo claro para Francisco que
deveria “salvar almas”, “viver para os outros”, “pregar a palavra de Deus ao
povo”, “ser arauto do Evangelho”[18].
“Como os apóstolos, Francisco sente-se chamado a seguir a Jesus Cristo, não só
para estar em sua companhia, mas também para ser enviado a pregar (cf. Mc
3,14-15). Para Francisco e os movimentos pauperísticos em geral, o seguimento
de Jesus Cristo é inseparável da missão. Por isso, ao escrever a sua Regra,
desenvolve como motivo inspirador: o conteúdo da missão dos apóstolos (Mc
10,7-13), que ouviu na igreja da Porciúncula, e as três passagens evangélicas
(Mt 19,21; Lc 9,3; Mt 16,24), lidas com Bernardo de Quintavalle na igreja de S.
Nicolau. Foram estes os textos que inspiraram a ‘forma de vida evangélica’,
característica da Ordem dos Frades menores”[19].
O envio à missão faz parte do
nascimento da Ordem dos Frades Menores. O Papa Inocêncio III, ao receber
Francisco e seus companheiros que lhe submetem sua regra, dá-lhes a bênção e o
seguinte envio: “Ide com o Senhor, irmãos, e conforme o Senhor se dignar
inspirar-vos, pregai a todos a penitência”[20].
O Papa João Paulo II, em sua carta por ocasião do Capítulo Geral de San Diego,
nos lembra este envio, acrescentando: “De minha parte, retomo hoje este envio à
missão, e dirijo-o a vós. Assim como, de fato, a existência da vossa Ordem é
devida a este primeiro envio, de igual modo hoje a missão que ela recebe da
Igreja, na pessoa do Sucessor de Pedro, dá-lhe a sua razão de ser”[21].
O seguimento de Jesus Cristo e o
envio à missão faz dos frades menores evangelizadores
itinerantes, para os quais “o mundo inteiro é o seu espaçoso claustro”, na
expressão de Jacques de Vitry[22].
Entendemos, então, que Francisco, na Regra Bulada, chegue a falar da Ordem como
uma fraternidade de peregrinos e viandantes[23],
sendo os frades pacíficos e humildes[24],
andando pelo mundo sem nada de próprio[25],
trabalhando com fidelidade e devoção[26].
4. “Sempre viveste o que falaste” (2Cel 130)
Ciente do chamado à missão,
Francisco tem clareza que não há frade que não possa fazê-lo, pois “todos os
irmãos podem pregar pelas obras”[27].
E apontava sempre para Jesus Cristo, “caminho, verdade e vida”[28],
solicitando que “todos os irmãos se esforçassem por imitar a humildade e
pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo”[29].
A qualidade evangélica de vida é o substrato
primeiro e decisivo, garantia da consistência do próprio anúncio. A missão que nos é confiada realiza-se pelo testemunho de vida e pelo testemunho da palavra.
Para Francisco, o coração de nossa
vocação está em “viver o santo Evangelho”[30].
Nisto ele colocava todo o seu empenho[31],
desejoso que seus frades fossem “discípulos do Evangelho”[32].
As palavras do Evangelho transformam-se para Francisco em “palavras do Espírito
Santo, que são espírito e vida”[33].
Seu primeiro biógrafo fala dele com as seguintes palavras: “Pregando
freqüentemente a palavra de Deus a milhares de pessoas, tinha tanta segurança
como se estivesse conversando com um companheiro. Olhava a maior das multidões
como se fosse uma pessoa só e falava a cada pessoa com todo o fervor como se fosse
uma multidão”[34].
Todo esse vigor de Francisco
calcava-se na unidade de seu ser, o que fez Tomás de Celano escrever: “Sempre
viveste o que falaste, sempre foste o mesmo por fora e por dentro, sempre foste
o mesmo como súdito e como superior!”[35]
Em Francisco transbordava em abundância o que o habitava. Centrado na pessoa de
Cristo, numa “total entrega ao Senhor”[36],
“acima de tudo, desejava aniquilar-se para estar com Cristo”[37].
Escolheu a condição dos pequenos, na minoridade
e submissão a todos[38].
Quis que os irmãos se chamassem de “frades menores”[39],
apontando para uma condição real de vida, decisiva para reconhecer se um irmão
era realmente movido pelo Espírito do Senhor[40].
A minoridade alia-se à pobreza e à
simplicidade como alicerces do frade menor. A pobreza ocupa um lugar de
destaque, sem abstrações, e, por isso, expressão de uma vida bem concreta.
Lemos na regra: “Os irmãos não tenham propriedade sobre coisa alguma nem sobre
casa nem lugar nem outra coisa qualquer; mas, como peregrinos e viandantes (cf.
1Pd 2,11) neste mundo, sirvam ao Senhor em pobreza e humildade”[41].
Esta forma evangélica de vida ganha
concreção e razão de ser na vida em fraternidade. Sem copiar modelos já
existentes, Francisco acolhe os irmãos como dádiva de Deus, reunindo-os em fraternidade.
“E depois que o Senhor me deu irmãos ninguém me mostrou o que eu deveria fazer,
mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do Santo
Evangelho”[42].
A fraternidade passa a ser o lugar de cultivo do carisma de Francisco; cultivo
do ser autêntico, simples e pobre, sem duplicidades e, por isso,
sempre disponível; lugar da acolhida do Evangelho de Cristo e das palavras do
Espírito Santo (e o seu santo modo de operar), que são espírito e vida[43].
[1] Cf. Mt 16,24; 19,21.
[2] Cf. Lc 9,3.
[3]
Ludovico GARMUS, O seguimento de Jesus
Cristo em S. Francisco, texto policopiado, p. 13; Cf. Théophile DESBONNETS,
Da intuição à instituição,
Petrópolis, Ed. Vozes/CEFEPAL, 1987, p. 18-30.
[4]1Cel 22; cf. LegM 3,1 e Juliano de Spira, Vita
Sancti Francisci, 15-16.
[5] Cf. AnPer 11.
[6] Cf. Leg3C 43-53; 1Cel 32, 33,
89.
[7] Cf.
Lorenzo DI FONZO, “L’apostolato intellettuale”, Miscellanea Francescana, 94 (1994), 525-609.
[8] Cf. RegNB 17,1-2; RegB 9,2.
[9] Cf. RegNB 17,3.
[10]
Cf. Herbert GRUNDMANN, Movimenti
religiosi nel medioevo, Bologna, Società Ed. Il Mulino, 1980; Ildefonso SILVEIRA, Itinerário de São Francisco de Assis, col .“Cadernos do IFAN” n.
12, Bragança Paulista, EDUSF, 1995, p. 7-47.
[11]
Cf. Lothar HARDICK, Santo Antônio, vida e
doutrina, Peetrópolis, Ed. Vozes/CEFEPAL, 1981, p. 36; Augustin FILCHE,
Victor MARTIN (ed.), Historia de la
Iglesia, vol IX: Las Cruzadas,
Valencia, EDICEP, 1977, p. 621.
[12] Cf.
Martinho CONTI, Leitura bíblica da regra
franciscana, Petrópolis, Ed. Vozes, CEFEPAL, 1983, p. 88.
[13]
Gerd THEISSEN, Sociologia do movimento de
Jesus, Petrópolis/São Leopoldo, Ed. Vozes/Ed. Sinodal, 1989.
[14] Cf. RegB 1,1.
[15] Cf. Test 14; Leg3C 29.
[16] Cf. Martinho CONTI, op. cit., p. 84-100.
[17]
Cf. ibidem, e, sobre o movimento
franciscano, David FLOOD, Frei Francisco
e o Movimento Franciscano, Petrópolis, Ed. Vozes/CEFEPAL, 1986.
[18] Cf. Legm 2,5.
[19]
Ludovico GARMUS, op. cit., p. 11.
[20] 1Cel 33.
[21]
Capítulo Geral de San Diego, A Ordem e a
Evangelização Hoje, n. 5.
[22] Jacques
DE VITRY, Historia Occidentalis, n.
17.
[23] Cf. RegB 6,2.
[24] Cf. ibidem, 3,11.
[25] Cf. ibidem, 6,1.
[26] Cf. ibidem, 5,1.
[27] Cf. RegNB 17,3.
[28] Cf. Adm 1,1.
[29] Cf. RegNB 9,1.
[30] Cf. RegB 1,1.
[31] Cf. 1Cel 84.
[32] Cf. LegM 11,1.
[33]
Cf. Lázaro IRIARTE, Vocazione francescana
- Sistesi degli ideali de san Francesco e di santa Chiara, Casale
Monferrato, Ed. Piemme, 1987, p. 90.
[34] 1Cel 72.
[35] 2Cel 130; cf. 1Cel 115.
[36] Cf. LegM, Milagres, X,8.
[37] 1Cel 71.
[38] Cf. RegNB 5,15; 7,3.
[39] Cf. ibidem, 6,3.
[40] Cf. Adm 12,1-3.
[41] RegB 6.
[42] Test 4.
[43] Cf. 2CFi 3; Adm 7,4; Test 13.
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