sexta-feira, 16 de maio de 2014

POR UM EQUILÍBRIO ÉTICO ENTRE O SER HUMANO E A CRIAÇÃO

                Superar o desequilíbrio vital grave de nosso moderno sistema de vida, no qual estamos deslizando e soçobrando, torna-se hoje o imperativo de maior envergadura. Isto tem como contrapartida a busca incessante de um equilíbrio da criação como um todo, no entrelaçamento de seus diversos subsistemas ‘vitais’. Queremos, com isso, dizer um não ao poder, à acumulação, ao interesse, à razão instrumental e instrumentalizadora, à depredação, à capitalização sem fim. Queremos dizer sim à comunhão, à gratuidade, à alteridade, à percepção do grande organismo cósmico, à referência de tudo com a Última Realidade, Deus.

            “Não podemos mais apoiar-nos no poder como dominação e na voracidade irresponsável da natureza e das pessoas. Não podemos mais pretender estar acima e sobre as coisas do universo, mas junto e a favor delas. O desenvolvimento deve ser com a natureza e não contra a natureza. O que deve ser mundializado atualmente é menos o capital, o mercado, a ciência e a técnica. O que deve, fundamentalmente, ser mais mundializado é a solidariedade para com todos os seres, a partir dos mais afetados, a valorização ardente da vida, em todas as suas formas, a participação como resposta ao chamado de cada ser humano e à dinâmica mesma do universo, a veneração(1) para com a natureza da qual somos parte, e parte responsável. A partir desta densidade de ser, podemos e devemos assimilar as ciências e as técnicas como forma de garantirmos o ter, mantermos ou refazermos os equilíbrios ecológicos e satisfazermos eqüitativamente nossas necessidades, de modo suficiente e não esbanjador e perdulário”(2).

            Para isso, não bastam ordens ou proibições isoladas, somente para esta ou aquela situação concreta, pois não resolve as questões de fundo que se interligam. Toda postura setorizada não levanta as questões de fundo, não checa a raiz dos problemas, mesmo se coadjuvada pelos resultados complexos da pesquisa técnico-científica. Isto porque perde de vista a problemática ecológica global, selecionando não raro fatores, favores, ganhos, revelando não raro conivências que se distanciam da responsabilidade social(3).

            A própria ética, diante da questão ecológica, deverá ser capaz de formular “um conceito único, claro e controlável, capaz de abranger as diferentes questões éticas particulares e de abrir uma perspectiva global”(4). Estamos percebendo que o mundo é muito mais do que o ambiente próprio do homem e vai além do próprio subsistema dos seres vivos. Isto nos convida a alargar a visão da ética que, para ser ecológica, deverá ser capaz de ir além do antropocentrismo exacerbado e além de um biocentrismo de auto-conservação e sobrevivência, pois desconectam os sistemas que compõe o todo da natureza. A ética levar-nos-á a integrar o equilíbrio dinâmico, na teia das relações globais, numa perspectiva de manutenção do todo, lastreada na co-responsabilidade.

            Estamos, hoje, redescobrindo a necessidade de lastrear o nosso viver com uma ética básica, capaz de interligar as pessoas, os povos e a natureza com normas, valores, ideais e objetivos válidos, capaz de organizar a responsabilidade coletiva nos diversos planos possíveis da prática e do discurso. Faz-se necessário criar um mínimo de consenso fundamental em vista da convivência ecológica de toda a criação. Isto será crucial para uma natureza já ferida de morte.

            Sendo que o distintivo do ser humano é de só ele ser capaz de ter responsabilidade, isto “significa ao mesmo tempo que ele tem que tê-la pelos seus semelhantes”(5). Esta possibilidade é autocomprometedora. Devemos, porque podemos. Porém, não basta apenas repetir apelos morais em favor da justiça, da paz e da preservação da natureza, sem um conteúdo concreto, sem operacionalizar o terreno da práxis coletiva. Faz-se necessário superar os meros protestos e discursos que resvalam nos modismos que se somam e passam sem deixar rastro. “Protestos ficam apenas glopes no ar, se não produzirem projetos de atitudes e ações que inspirem e motivem as pessoas a melhorar a situação...”(6). Retraduzindo o elan do Greenpeace, diríamos que importa “pensar globalmente e agir localmente”.

            A singularidade do ser humano, homem e mulher, se revela no fato de só ele se constituir num ser ético. Só ele é capaz de res-ponder responsavelmente à pro-posta que lhe vem da criação. Por isso, falamos hoje da imperiosa necessidade de redescobrir a ética e auscultar os caminhos que ela vai nos apontar. Ela é mobilizadora do humano, do que há de vital, englobando a natureza toda(7). Distingue-se pelo seu caráter crítico e reflexivo na sistematização dos valores e das normas, tendo o papel de investigá-los e depurá-los, em vista do equilíbrio de toda a criação.

            “O ser humano vive eticamente quando renuncia estar sobre os outros para estar junto com os outros. Quando se faz capaz de entender as exigências do equilíbrio ecológico, dos seres humanos com a natureza e dos seres humanos com os outros seres humanos, e quando, em nome do equilíbrio, impõe limites a seus próprios desejos. Ele não é apenas um ser de desejos. Somente o desejo torna-o egoísta ou mimético. Ele é muito mais, pois é também um ser de solidariedade e de comunhão. Quando assume a função/vocação de administrador responsável, de anjo da guarda e de zelador da criação, então ele vive a dimensão ética inscrita em seu ser”(8).

Notas:
1. O sentido de “veneração” não poderá resvalar na direção de uma versão “panteísta” ou de um “naturalismo” ingênuo, mas apoiar-se substancialmente numa atitude “reverente” diante da natureza, como a viveu Francisco de Assis.
2. Cf. BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização e espiritualidade: A emergência de um novo paradigma.  São Paulo: Editora Ática, 1993, p. 41.
3. Cf. AGOSTINI, Nilo. Ecologia: desafio ético-teológico. Grande Sinal, Petrópolis, v. 46, p. 265, maio/junho, 1992, p. 267s.
4. Cf. KROH, Werner. Bases e perspectivas de uma ética ecológica: O problema da responsabilidade pelo futuro como um desafio à teologia. Concilium, Petrópolis, n. 4, fasc. 236, p. 87, 1991.
5. Cf. ibid., p. 92s.
6. Afirmação de LEERS Bernardino ao fazer a apreciação do livro Ética e Evangelização de AGOSTINI Nilo. Cf. Grande Sinal, Petrópolis, v. 47, p. 745, 1993.
7 Cf. AGOSTINI, Nilo. Resgate da ética, redescoberta do vital humano. Revista Em Foco, Petrópolis, n. 1, p. 25, abril, 1995.
8. BOFF, Leonardo. Op. cit., p. 36.

Fonte:
AGOSTINI, Nilo. A crise ecológica: O ser humano em questão. Atualidade da proposta franciscana. In: DA SILVA MOREIRA, Alberto (Org.). Herança Franciscana. Petrópolis; Bragança Paulista: Vozes; USF, 1996, p. 236-238.

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