Frei Nilo Agostini, ofm
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À medida que a modernidade ganhou
estatura através das quatro revoluções (cultural, científica, política e industrial),
propagou-se a ideia de que a Igreja sempre se posicionara de forma contrária à
ciência ou de que a Igreja nunca apoiara os avanços científicos. Alardearam-se
casos tradicionais da história (Giordano Bruno, Galileu) para acirrar ou criar
uma falsa guerra entre ciência e religião (cf. BRUNO; GALILEI, 1973). Hoje, o
desafio é o de vencer o entrincheiramento da ciência e da religião, uma com o
cientificismo e a outra com o fundamentalismo. Um diálogo, além das
trincheiras, será benéfico para todos.
O
Papa Bento XVI disse aos estudantes católicos ingleses por ocasião de sua
visita a Inglaterra em setembro de 2010:
"O mundo
necessita de bons cientistas, mas uma perspectiva científica torna-se perigosa
se ignora a dimensão religiosa e ética da vida, da mesma maneira que a religião
se converte em limitada se rejeita a legítima contribuição da ciência em nossa
compreensão do mundo”
Difundiu-se muito a ideia de que o
homem é o único padrão ou a única referência para si mesmo, elegendo a
racionalidade científica como o único caminho para um mundo perfeito. Bastaria
acionar a sua vontade “ilustrada” e ele dominaria a natureza, submeteria as
forças hostis e construiria um mundo melhor. O progresso seria infinito num
contexto social de mobilidade e mudanças contínuas. Sabemos, no entanto, que uma
série crise deste modelo sacudiu o século XX e criou uma nova situação, chamada
de “pós-modernidade”, um cenário de medo, incerteza e desconfiança ante as
pretensões da razão humana inscrita na modernidade. Assim descreveu João Paulo
II, na Fides et Ratio (1998, n. 91),
este cenário pós-moderno:
“As correntes de
pensamento que fazem referência à pós-modernidade merecem adequada atenção.
Segundo algumas delas, de fato, o tempo das certezas teria irremediavelmente
passado, o homem deveria finalmente aprender a viver num horizonte de ausência
total de sentido, sob o signo do provisório e do efémero. Muitos autores, na
sua crítica demolidora de toda a certeza e ignorando as devidas distinções,
contestam inclusivamente as certezas da fé”.
Mesmo em meio a este contexto, a
postura da Igreja Católica diante das ciências é de apreço e entendimento.
Vejamos o que nos diz o Concílio Vaticano II (GS n. 44, apud KLOPPENBURG, 1991, p. 192):
“A experiência dos
séculos passados, o progresso das ciências, os tesouros escondidos nas várias
formas da cultura humana, pelos quais a natureza do próprio homem se manifesta
mais plenamente e se abrem novos caminhos para a verdade, são úteis também à
Igreja”.
O
mesmo Concílio defende a justa autonomia das realidades terrestres, afastando
qualquer temor neste campo. Dedica, para isso, uma atenção especial com as
seguintes palavras:
“Se por autonomia
das realidades terrestres entendemos que as coisas criadas e as mesmas
sociedades gozam de leis e valores próprios, a serem conhecidos, usados e
ordenados gradativamente pelo homem, é necessário absolutamente exigi-la. Isto
não é só reivindicado pelos homens de nosso tempo, mas está também de acordo
com a vontade do Criador. Pela própria condição da criação, todas as coisas são
dotadas de fundamento próprio, verdade, bondade, leis e ordem específicas. O
homem deve respeitar tudo isto, reconhecendo os métodos próprios de cada
ciência e arte. Portanto, se a pesquisa metódica, em todas as ciências,
proceder de maneira verdadeiramente científica e segundo as leis morais, na
realidade nunca será oposta à fé: tanto as realidades profanas quanto as da fé
originam-se do mesmo Deus. Mais ainda: Aquele que tenta perscrutar com
humildade e perseverança os segredos das coisas, ainda que disto não tome
consciência, é como que conduzido pela mão de Deus, que sustenta todas as
coisas, fazendo que elas sejam o que são...” (CONCÍLIO VATICANO II. GS, n. 36, apud KLOPPENBURG, 1991, p.
179).
Em 1936, Pio XI refundou a
Pontifícia Academia das Ciências. Na ocasião, escreveu o Papa: “A ciência,
quando é verdadeiro conhecimento do real, não contrasta nunca com as verdades
da fé cristã” (PIO XI, 1936, p. 421). Paulo VI, mais tarde, sublinha a
necessidade da dimensão moral para o progresso da ciência. João Paulo II,
demonstrando grande interesse pelo papel da ciência no mundo moderno e pela
relação entre fé e ciência, traça uma ponte que deve unir ao mesmo tempo ética
e epistemologia, antropologia e metafísica, sempre a partir da própria
experiência do homem e da sociedade (cf. STRUMIA, 2003). João Paulo II deixou bem claro o
seguinte:
“A finalidade
principal da ciência é a busca da verdade [...], uma busca que deve ser livre
diante dos poderes políticos e econômicos; a verdade científica, portanto, é
como qualquer outra verdade, devedora somente a si mesma e à suprema Verdade
que é Deus criador do homem e de todas as coisas” (Apud RATZINGER/BENTO XVI,
2010, p. 23-24).
O Papa Bento XVI propõe, por sua
vez, uma renovada relação entre fé e ciência, uma relação de autonomia e
distinção. Lembra, no entanto, que “distinção não significa separação ou
estranhamento, significa que a distinção entre os campos do saber não é entendida
como oposição” (RATZINGER/BENTO XVI, 2010, p. 50-51). Existem pontos de
encontro entre ambas. Tanto uma como a outra colaboram para o conhecimento,
quer por meio das capacidades racionais quer por meio do crer a uma fonte que
na fé cristã é o Deus Revelador e Comunicador. Existe uma contribuição que uma
confere à outra e vice-versa. Para isso, Bento XVI (2010, 54) cita o Papa João
Paulo II: “A ciência pode purificar a religião do erro e da superstição, a
religião pode purificar a ciência da idolatria e dos falsos absolutos”. Deve
haver sempre um cuidado para não cair em reducionismos. “Todo reducionismo
epistemológico acaba num reducionismo antropológico”, lembra Bento XVI (2010,
p. 55).
É indispensável travar um diálogo
entre ciência e fé, entre ciência e religião além das trincheiras (cf.
AGOSTINI, 2010, p. 146-147). “Quando seus dados são bem compreendidos, longe de
se opor, elas se completam harmoniosamente” (POUPARD, 1982, p.11).
Cabe assumir sempre o princípio de humanidade (cf. GUILLEBAUD, 2008), numa
defesa da vida que, para os cristãos, está no centro da mensagem do próprio
Evangelho.