Por Pe. Valdecir Luiz Cordeiro
Fonte:
http://www.paulus.com.br/portal/colunista/valdecir-cordeiro/a-copa-do-mundo-e-pecado.html#.U6lqc5RdWYE
Uma pessoa me advertiu, em
nome de sua fé cristã, que “a Copa é do mundo”, ressaltando, com a expressão “édo” mundo, o
caráter mundano e supostamente pecaminoso do campeonato mundial de futebol. Mas
será que a Copa é pecado? Dá para torcer sem culpa?
A
verdade é que, descontadas as vicissitudes eventualmente presentes na
organização e no decorrer do evento, no centro da Copa está a dimensão lúdica
do ser humano, que deve ser valorizada. Até o Papa é torcedor.
O jogo, entendido
como brincadeira, é coisa de Deus. O livro dos Provérbios afirma que a
Sabedoria de Deus brinca, joga (8,22-33). Enquanto Deus criava o mundo, a sua
Sabedoria “brincava sobre a superfície da terra” (8,31). Por conseguinte, não
faz sentido dizer que o jogo é pecado, pois a dimensão lúdica explicita o
caráter relacional da humanidade, a gratuidade e a novidade, que são dons de
Deus.
O jogo é
relacional. Ninguém joga sozinho, nem
mesmo Deus. Isto fica claro na relação entre Deus e o mundo criado. Ao decidir
criar, Deus se dispõe livremente a jogar com a sua criação.
Esvazia-se
de sua onipotência e onipresença para permitir a existência das criaturas.
Para jogar com as
criaturas, Deus respeita as leis da natureza. Do ponto da vista da ética, o
jogo de Deus se dá no reconhecimento do outro. O desejo de ilimitação é o
anti-jogo, pois elimina o outro ao negar o caráter relacional da existência
humana.
O jogo é
esvaziamento de si e abertura para o outro. O individualismo, que se
materializa na falta de entrosamento, e a brutalidade, que se manifesta nas
faltas graves, são atitudes a serem refreadas em prol do bom jogo.
Neste
sentido, a Copa pode ser vista como uma grande expressão do reconhecimento da
diversidade dos povos, sintetizada em cada jogo.
No jogo, a vitória
não anula o rival, o vencido não absolutiza o vencedor. O jogo é como um rio.
Os rivais são as margens que ladeiam o fluxo caudaloso do jogo. A limitação do
tempo, materializada no apito final, cria a noção de vitória da qualidade sobre
a mediocridade. Uma metáfora do fim último da existência, quando todo o amor
vivido se manifestará em plenitude.
O jogo é
gratuidade. É significativo, mas
não necessário. O jogo – a brincadeira – é graça. A liberdade de Deus diante da
criação nos ajuda a compreender o assunto. A criação não é simplesmente uma
obra situada num passado primordial, levada a cabo por um Ser onipotente. Fosse
assim, tudo estaria pronto e acabado. Mas não.
O jogo da criação se
prolonga na história mediante a colaboração entre Deus e os seres humanos. É um
jogo, uma brincadeira, pois nenhum dos parceiros está obrigado a jogar.
Assim são também as
brincadeiras das crianças nos intervalos das aulas, na escola, bem como
qualquer jogo. Ninguém é obrigado a entrar na pelada de futebol. E se for, o
jogo perde a graça.
O jogo é
novidade. Não é possível planejar e
prever tudo. Jamais um jogo se repetirá. Há enorme espaço para a criatividade.
O planejamento, o esquema tático, é uma poderosa força sobre o talento, como as
leis naturais que mantém a posição dos astros nas galáxias. Mas, quando o jogo
é jogado, brilha a estrela dos craques. Até mesmo jogadores medianos podem
brilhar. É o triunfo da criatividade sobre a enorme força dos esquemas e
protocolos que aprisionam o espírito.
A
conjugação dessas três dimensões – reconhecimento da alteridade, afirmação da
gratuidade e abertura à novidade – torna o jogo uma atividade altamente
humanizadora.
O reconhecimento do
outro, inerente ao jogo, pode ser visto como um elemento de resistência a certo
tipo de globalização econômica que massifica e domina os povos. Paradoxalmente,
o jogo é a rebeldia do espirito humano contra o “padrão Fifa”.
Há
enorme peso da padronização na Copa. O idioma oficial, os protocolos, o mesmo
tempo reservado ao hino nacional de cada seleção, ignorando que cada hino tem
seu tempo, porque cada nação tem sua história etc. Mas, no jogo, cada time é um
time, cada torcida, uma torcida. O jogo é a síntese das diferenças.
A gratuidade do
jogo, a não obrigação de jogar, o fazer por brincadeira, é um elemento
essencial para que o jogo não seja mera euforia social. A atividade lúdica é
resistência à tendência do sistema a reduzir o ser humano à rotina do chão de
fábrica. O jogo transcende esse mundo altamente organizado e estruturado por
rígidas leis administrativas. O jogo é flexível, nele o homem cria o
inesperado, o espetáculo, o gol.
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